carlos krauz
MONÓCULOS
2003
O JARDIM DOS PINCE-NEZ
O presente texto é a tentativa de expor a vivência que tive oportunidade de compartilhar com vários colegas durante a experiência do Perdidos no Espaço, denominação do grupo de artistas envolvidos no Projeto de Extensão Formas de Pensar a Escultura, do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, durante o ano de 2002. As atividades se estenderam até o mês de janeiro de 2003, quando da montagem e exposição das intervenções artísticas no Campus central daquela universidade. Minha intervenção centrou-se no espaço escalonado caracterizado por patamares e que se encontra entre o Castelinho, o Chateau e o Observatório Astronômico.
A escolha do espaço entre o Chateau, o Observatório Astronômico e o Castelinho, para a montagem do trabalho MON / ÓCULOS·, foi o resultado de um namoro que iniciou com as atividades do Perdidos no Espaço, durante o primeiro semestre de 2002. Neste período várias visitas foram feitas ao campus central da UFRGS, já que o projeto de Extensão, Formas de Pensar a Escultura, se voltava para aquele sítio sob a forma de intervenções artísticas nele.
Para registrar esse namoro realizei algumas fotos, buscando levantar as peculiaridades daquele espaço. E, além da riqueza arquitetônica dos prédios que o compõem, me chamou a atenção, também, aquele terreno escalonado que se encontra entre eles, pois ele me convidava a um caminhar cauteloso e demorado, permitindo contemplá-lo pausadamente. Acredito que esse modo de caminhar estava relacionado ao fato de ele ser composto por degraus bastante longos. É muito curiosa essa formação. Ela é o oposto do princípio da escadaria. No caso da escadaria existem, algumas vezes, patamares entre degraus. Já naquele espaço do campus central da UFRGS ocorre o oposto, ou seja: existem degraus entre patamares. A vivência com este espaço me remete a Julio Cortázar quando nos dá Instruções para subir uma escada1 :
(...) "Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau." *1
Se esses degraus se encontram entre as exceções sobre as quais Cortázar nos fala, que ser gigantesco eles aguardariam ? Ou teriam eles sido extraídos de uma pintura surrealista ?
De todo modo nos encontramos diante de degraus que se alongam formando um espaço generoso ... A predominância desses degraus ou, mais exatamente, de patamares entre eles, parecem imprimir um andar mais lento e exigir um olhar mais detido sobre o espaço que vamos descortinando. ( Imagem 1 )
Após alguns meses estava claro, para mim, que uma intervenção artística naquele espaço precisava estar relacionada às características nele encontradas. E a característica principal estava relacionada ao fato de aquele caminho escalonado nos conduzir, por um andamento descendente, à entrada do Observatório Astronômico ou nos convidar, quando no interior dele, para uma aprazível caminhada ascendente entre os jardins e os prédios que compõem aquele conjunto arquitetônico. ( Imagem 2 )
Foi a denominação - Observatório - que me convidou a pensar aquele espaço que se alonga diante daquela edificação, cuja orientação espacial fora calculada tendo em vista a função para a qual fora destinada. Esta orientação está relacionada ao movimento de rotação da terra de modo que a esfera celeste desfila diante do seu telescópio atribuindo-lhe, assim, uma necessária sintonia cósmica. E foi o fato de existir não apenas um espaço, mas também um dispositivo - o telescópio, que pode ser orientado para esta ou aquela estrela - que me interessou pensar este espaço. E como tais dispositivos científicos são geralmente providos de espelhos e lentes, visando amplificar nossa capacidade de ver, optei pela utilização de monóculos, que também são dispositivos que amplificam nossa capacidade de ver e cuja composição se assemelha.
Entretanto, no caso dos monóculos, retirei-lhes as lentes, que se encontram em uma das suas extremidades e coloquei, na outra, pequenas lâminas de espelhos planos formando um ângulo de 45 graus. Essa angulação propicia um tipo de reevio do olhar, que era o que me interessava. Desse modo, o dispositivo-monóculo estava orientado para o norte geográfico, mas o espelho colocado a sua frente reeviava o olhar para o oeste, para o leste ou mesmo para o céu. Com isso a função original desse tipo de dispositivo, destinada a facilitar o que se vê através dele, transformou-se num engano, numa dificuldade. ( Imagens 3, 4, 5, e 6 )
Mas qual realidade descortinamos quando vemos, através de um telescópio, uma estrela ? Vemos realmente uma estrela ou estamos, tão simplesmente, diante de seu brilho ? Sabemos que muitos astros e constelações, que descortinamos através destes dispositivos, já se extinguiram há milênios e o que delas vemos é apenas a sua luz. Em outras palavras, estamos diante da energia que se desloca no espaço e não da fonte que a provera.
Ao criar os MON / ÓCULOS essas indagações me cercavam pois, ao escolher os monóculos como dispositivos para uma intervenção, me dei conta que, quando o utilizamos convencionalmente para uma apreciação intimista de uma imagem fotográfica em seu interior, por exemplo, também estamos diante de uma representação, de algo que evoca o seu modelo. É exercitado um certo tipo de voyeurismo e o nosso olhar alcança toda a extensão física da imagem. Já com o telescópio nosso olhar é convidado a descortinar estrelas e constelações por um tipo de varredura, fatiando o espaço em busca de novos corpos celestes. É impossível descortinarmos toda a abóbada celeste de um só golpe de vista. Através do telescópio conseguimos avançar milhares de quilômetros em fração de segundos em direção a nosso alvo. Em outras palavras, com o monóculo o olhar é convidado a olhar para dentro e, com o telescópio, ele avança ao encontro de um corpo celeste que se encontra muito distante e fora dos limites físicos do dispositivo. De todo modo o telescópio e o monóculo pertencem a mesma família de dispositivos e, em ambos, o meu objeto está inalcançável.
Voltando a MON / ÓCULOS, percebi, ao longo do processo de criação, que faltava-lhe um elemento fundamental que estava estreitamente relacionado ao Observatório e que esse elemento era a orientação espacial. Essa orientação espacial encontramos no modo como aquele prédio fora edificado, ou seja: obedecendo ao movimento da abóbada celeste, como foi mencionado acima.
A existência de uma orientação espacial me interessou e, a partir da constatação de sua presença no modo como o Observatório Astronômico fora edificado, fixei os monóculos - sem as referidas lentes - no topo de uma haste metálica dourada, cuja altura variou de um metro e sessenta centímetros a um e setenta.
( Imagem 7 )
Aproximadamente setenta centímetros abaixo de cada monóculo encaixei, em uma fenda horizontal na haste, uma lâmina plana de vidro incolor transparente, sobre a qual decalquei a letra N (Norte) com um vetor logo acima dela, ambos em letra transferível branca. Essa convenção, auxiliado por uma bússola, orientou espacialmente cada monóculo. Com esse procedimento todos se encontravam apontando para o Norte, que é a orientação também dada à abertura da cúpula do Observatório Astronômico. ( Imagem 8 )
Entretanto, mesmo com essa orientação real para o Norte, alguns dos cinco monóculos possuíam, colados em uma das suas laterais, espelhos dispostos em 45 • de abertura de modo que, mesmo que fisicamente estivessem voltados para o Norte, o espelho em uma de suas laterais provocava um reenvio do olhar, fazendo descortinar pontos no espaço que, na verdade, se encontravam à leste ou à oeste do observador. Um dos monóculos era provido de um espelho em cada lateral, provocando a sobreposição de dois ou três campos simultaneamente. Com isso ocorria um duplo reenvio do olhar, ou seja: através dos espelhos e pela sua disposição paralela com idêntica angulação, era possível descortinar aquilo que se encontrasse realmente em frente ao monóculo. Assim só era possível darmos conta do que estivesse em frente ao monóculo, tão logo sua imagem fosse duplamente refletida no interior do dispositivo, mas não era possível olhar para frente de modo direto. Desse modo os espelhos eram obstáculos especulares e, ao mesmo tempo, aparentemente transparentes.
Em outro dos dispositivos foi colocado um espelho, também com abertura de ângulo de 45 graus, na parte inferior do monóculo, de modo a refletir o céu e parte do topo do prédio do Chateau, que se encontrava, na verdade, atrás do espectador.
Em um dos monóculos foi colocada, lateralmente, uma lamina plana de vidro incolor transparente e com idêntica angulação. Conforme as condições de luminosidade que o circundasse, era possível ver o que ocorria através dele fundir-se a um reflexo tênue de outro ponto do espaço que alcançava a superfície da lâmina de vidro. ( Imagem 9 )
Outro aspecto fundamental, que norteou a escolha dos monóculos enquanto dispositivos para uma intervenção artística, estava relacionado ao fato de que seria possível realizar experiências utilizando apenas um olho, assim como acontece quando observamos ao telescópio um corpo celeste. Essa experiência monocular para mim está relacionada a uma quase planarização do espaço, pois perdemos a visão estéreo espacial. Semelhante processo ocorre ao observarmos através do telescópio. Parece que, quer os corpos celestes, quer o espaço escuro em volta deles, habitam o mesmo plano. Para mim o mesmo ocorre em MON / ÓCULOS, especialmente quando o olhar direto através do dispositivo é obstaculizado pelo espelho, tornando o espaço uma imagem que reenvia nosso olhar para outro ponto do espaço que não aquele para o qual temos consciência que o dispositivo esteja realmente apontando.
Aspecto também importante e que compunha essas experiências era o do deslocamento físico do espectador. E, dado que alguns dispositivos se encontravam a longa distância um do outro, se fazia necessário deslocar-se naquele espaço gramado. Com isso a posição cardeal do espectador alterava-se. Entretanto nem sempre, ao longo de uma caminhada, nos damos conta dos desvios e reposicionamentos espaciais. Parece que, enquanto caminhamos, nos centramos em nossos pensamentos e perdemos consciência das novas posições que ocupamos dentro do espaço. Guy Brett nos conduz a uma reflexão sobre o caminhar quando nos diz que o ato de caminhar
(...) “ é talvez o menos condicionado e intelectualizado dos sentidos físicos. *2
Talvez a perda de consciência de novas posições espaciais que ocupemos a cada instante se deva a essa característica. Entretanto ela parece estar implicada a um certo tipo de apagamento ou negligenciamento inconsciente da passagem do tempo quando nos centramos em nossos pensamentos ao longo de uma caminhada. Parece, às vezes, que o tempo que empregamos para percorrer a distância entre dois pontos em determinado espaço reduz-se ou alonga-se, conforme a vivência durante o exercício da caminhada. Talvez essa contração e distensão subjetiva do espaço seja a principal componente quando se trata de uma vivência espacial vinculada à produção artística. Em MON / ÓCULOS me interessou provocar, durante o deslocamento do espectador em busca de cada dispositivo, exercitar a caminhada e a mudança de posição no espaço como forma de experienciar o todo da intervenção tanto enquanto uma consciência do espaço físico quando do espaço vivido.
Desse modo disseminei os cinco MON / ÓCULOS naquela área de modo a sobrepor vivências espaciais de deslocamento do espectador àquelas de reenvio do olhar através dos dispositivos que são, de certa forma, também deslocamentos.
Carlos Krauz
Dezembro de 2003
· MON / ÓCULOS. Denominação do trabalho elaborado para a Intervenção a partir dos dispositivos portáteis para visualização de diapositivos utilizando-se apenas um olho. A grafia em maiúsculo e separada por barra tenta chamar a atenção para uma contradição: MON =1 e ÓCULOS =plural além, é claro, de criar uma denominação para o trabalho e diferenciar do dispositivo propriamente dito.
*1 Cortázar, Julio. Histórias de cronópios e de famas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.14.
*2 Oiticica, Hélio, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. ????